
No
coração do México, os falcões sobrevoam as altas montanhas, mergulhando em
direção às encostas suaves, semeadas de milho. Debaixo do sol tropical, as
iguanas descansam sobre rochedos brilhantes, e os tucanos conversam com os
guaxinins empoleirados em árvores verde-esmeralda. Por entre as colinas, os
pumas correm, as raposas cinzentas procuram galinhas, e os lobos uivam entre
si, à noite.
Numa
aldeia situada no sopé das montanhas, vivia uma avó com a neta. Plantavam
milho, tomates e girassóis na Primavera e juntas viam os rebentos verdes
despontar da terra. No Verão, colhiam lírios brancos como leite, punham-nos em
cestos às costas, e levavam-nos para vender no mercado. Pelo Outono, decoravam
caules esguios de milho para a festa das colheitas, a fim de agradecer os
cereais de um ano inteiro. No Dia dos Mortos, costumavam erigir um altar e
acender velas, relembrando os entes queridos. E no Natal, pegavam em cola e
papel e faziam pinhatas, que enchiam com frutas e doces.
A
avó era alta e imponente. Tinha as faces macias e as maçãs do rosto bem
marcadas. Os olhos eram profundos, castanhos e doces. Embora tristes, eram
bondosos. Tinha o peito largo e as ancas redondas. Pernas e pés robustos ligavam-na
à terra, como se fosse uma árvore antiga. Os braços eram fortes e as mãos
graciosas, com dedos longos e finos. Era uma mulher tão delicada como os
rebentos de um jacarandá.
A
neta gostava de explorar e de sonhar. Costumava brincar sozinha, nos campos e
nas florestas, mas tinha medo das sombras escuras, dos barulhos dos animais, e
de tudo o que fosse novo e diferente. “O que haverá no buraco desta árvore
velha?” pensava, enquanto se erguia nos bicos dos pés e esticava o pescoço para
espreitar o tronco oco. Contudo, mal ouvia um gato-do-mato nos ramos altos,
começava a tremer dos pés à cabeça, como um saco de folhas secas a ondular numa
tarde ventosa.
Certo
dia, a neta assustadiça encontrou um tatu. Não passava de um vulgar tatu que se
cruzara no seu caminho, mas a rapariga tremeu como se fosse um urso feroz com
garras afiadas e dentes rangentes. Depois desse encontro, cada pequena sombra
no caminho para casa iria transformar-se num monstro aterrador.
Quando
a avó ouviu o barulho da porta, correu para a neta e abraçou-a. Em seguida,
sentou-a ao colo e afagou-a com doçura. Enquanto lhe afagava o cabelo e as
costas, ia cantando:
—
Minha pequenina, como bate o teu coração e que medo te faz tremer tanto! O
mundo é um lugar assustador para os que não confiam. A minha ternura dar-te-á
confiança: a confiança que sinto, a confiança que a minha avó sentia, e que
herdou da avó dela.
A
neta sentiu-se invadida por um calor reconfortante e, enquanto o sol se punha,
deixou de tremer e adormeceu.
No
dia seguinte, um grupo de crianças surpreendeu-a enquanto brincava à beira da
estrada. Rindo e gritando, correram para ela e perguntaram-lhe:
—
Onde fica o rio?
Em
vez de fugir, a menina apontou com o dedo para a esquerda. Embora tremesse por
dentro, o dedo mantivera-se firme. Nessa noite, contou à avó o que acontecera.
A avó sorriu:
—
Isso já é um progresso.
Pegou
na neta ao colo e afagou-a como se faz a um gatinho. Depois, começou a cantar:
—
Minha pequenina, como bate o teu coração e que medo te faz tremer tanto! O
mundo é um lugar assustador para os que não têm coragem, mas hoje mostraste
bravura. A tua coragem alia-se à minha e à da minha avó, que a herdou da avó
dela.
A
neta sentiu uma força percorrer o seu corpinho e as tremuras pararam.
Alguns
dias depois, um beija-flor caiu de um ninho no jardim e partiu uma asa. Em vez
de fugir, a neta assustadiça dirigiu-se à avezinha e pegou nela. O corpo do
pássaro tremia ainda mais do que o seu. A menina sentia o coraçãozinho
minúsculo e trémulo e a barriguita quente e penugenta. Pegou no beija-flor com
a mesma ternura com que a avó pegara nela e levou-o para casa.
A
avó sabia tomar conta de animais feridos. Fizeram juntas um pequeno ninho numa
caixa, com tecido e palha, e alimentaram o pássaro com um conta-gotas. A menina
deu de beber ao bichinho, gota a gota. À medida que o fazia, ia sentindo um
entusiasmo percorrer o seu corpo.
A
avó sorriu e o sorriso iluminou-lhe o olhar.
—
Isto é que é um progresso!
Enquanto
o beija-flor dormia, pegou na neta e cantou:
—
Minha pequenina, como bate o teu coração e que medo te faz tremer tanto! O
mundo é um lugar assustador para os que não ajudam os outros. Hoje ajudaste uma
criatura pequena e assustada e descobriste o teu dom de curar.
Durante
toda a noite, a avó manteve a sua querida neta ao colo e continuou a cantar:
—
Este é o dom que te transmito, que é também o dom da minha avó, que o herdou da
avó dela.
Certa
tarde, a neta observava uma loja do mercado quando o comerciante acusou
injustamente uma criança de ter roubado. A menina viu a cara irada do homem
enquanto este apontava um dedo ameaçador ao menino. Embora com o coração a
bater, aproximou-se do comerciante e disse:
—
Este rapaz não roubou nada. Eu vi. Por favor, não grite com ele.
O
comerciante grunhiu uma resposta e a rapariga perguntou:
—
Quanto dinheiro perdeu?
—
Dez cêntimos — respondeu o homem.
A
menina remexeu no bolso e deu-lhe todo o dinheiro que tinha.
—
Isto é que é progresso! — exclamou a avó, quando a neta lhe contou o sucedido,
quase sem fôlego pela corrida até casa.
A
avó pegou nela ao colo e afagou-a durante muito tempo.
—
Ouve bem, minha querida. O mundo é um lugar assustador para os que não têm
dignidade. Hoje mostraste a tua. A ela junto a minha e a da minha avó, que a
herdou da avó dela.
A
neta sentiu um orgulho estranho invadir-lhe o corpo. Sentiu-se maior e mais
forte.
◊◊◊◊◊◊
Quantas
vezes mais a avó acariciou a neta? Quantas vezes mais cantou para ela? Não sei.
Mas sei que o fez muitas e muitas vezes, durante muitas semanas e muitos anos.
Através da sua ternura, incutiu na neta assustadiça confiança e coragem,
destreza e dignidade. E as suas canções eram tão profundas que penetravam o
coração, o sangue, e todo o corpo da menina.
A
neta cresceu esperançada, digna de confiança, generosa e bondosa. Já ninguém se
lembrava de que fugira em tempos de guaxinins. Tornou-se uma mulher forte, de
gargalhada fácil, tirando prazer de tudo o que a rodeava.
E
muito mais tarde, embora já tivesse filhos, ainda punha a cabeça no colo da avó
de vez em quando. Conhecia bem a linguagem das mãos dela e sorria, de olhos
fechados, enquanto a avó percorria o caminho familiar da ternura que sempre lhe
mostrara.
Com
o decorrer dos anos, a avó tornou-se velha e frágil. Chegou então a vez da neta
tomar conta dela. De manhã bem cedo, vinha acender o lume e aquecer água para o
chá. Cozinhava, lavava e penteava o cabelo prateado da velhinha. Massajava com
carinho os pés cansados, dedo a dedo. Pegava nas mãos que tanto amava e
massajava-lhe os dedos hirtos. Por vezes, embora mais raramente, caminhavam
juntas pela aldeia, atravessavam o vale e iam até às montanhas, rindo e
cantando juntas. Sempre que o piso era incerto, a neta oferecia o braço à avó.
Uma
noite, a neta sonhou com a avó a subir sozinha a montanha. Queria juntar-se a
ela, mas a avó virou-se e levantou a mão:
—
Tenho de ir sozinha — dissera, com um sorriso tranquilo nos olhos.
No
dia seguinte, como de costume, a neta foi a casa da avó. Mas, quanto tentou
acordá-la, viu que o corpo estava frio e a face serena. De joelhos, fulminada
pela dor, a neta sentiu o coração a esvoaçar e o estômago a tremer, como quando
era criança.
Estremeceu
dos pés à cabeça, como ramo de um cedro apanhado no meio de uma tempestade
tremenda. Como poderia viver sem a sua avó adorada? O coração abriu-se como um
rio e as lágrimas inundaram o seu rosto. Os soluços sacudiram-na toda. De
repente, ouviu a voz da avó:
—
Minha pequenina, ouve-me.
A
neta sentiu umas mãos fortes e quentes a acariciar-lhe as costas. Eram mãos
invisíveis, mais poderosas do que as mãos físicas da avó. Essas mãos
abraçaram-na e embalaram-na, incutindo-lhe bem-estar por todo o corpo. Os
soluços cessaram, tão depressa como tinham começado. Sentiu uma enorme leveza
no coração e força nos membros. Pôs-se de pé, e afagou a face e a testa da
querida avó morta.
◊◊◊◊◊◊
A
neta já foi muitas vezes avó. E muitas vezes também já pegou ao colo nos netos.
Embalou-os com os seus braços fortes e capazes, riu e chorou com eles, e cantou
para eles, enquanto os acariciava.
—
Meus pequeninos, ouçam bem. O espírito da avó rodeia-nos. Está no vento e nas
árvores. Está nos vales e nas colinas. As mãos do espírito da avó brincam com
os peixes nos riachos e acendem o lume da lareira. Está sempre presente quando
estamos com amigos calorosos, quando provamos comida deliciosa, e sempre que
partilhamos sorrisos ou lágrimas. Onde quer que estejamos, a avó está sempre
perto. E sempre que precisarmos dela, podemos fechar os olhos e sentir-nos no
seu colo.
Barbara
Soros; Jackie Morris, Grandmother’s
Song, Bristol ,
Barefoot Books, 1998 (Tradução e
adaptação)
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