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CAVALOS DE VENTO: pequenos papéis com a figura de um cavalo pintado que se lançam ao céu. O vento leva aos deuses as preces que se escrevem neles. Os cavalos de vento também podem ser de tecido, em forma de bandeirinhas de oração.
Nessa noite, por baixo da manta, Dolma tomara uma decisão.
No dia seguinte, partiria ao alvorecer com o seu iaque e subiria o estreito que
leva ao grande lago sagrado Zhara Yuntso. Ficava longe e muito alto na
montanha, mas fá-lo-ia, pela sua mãe doente. Arranjara muitos pequenos cavalos
de vento que lançaria do cume para levarem as suas orações.
Antes do amanhecer, Dolma encheu o alforge com comida para a
viagem: carne seca, bolas de tsampa** e chá de manteiga. Abraçou a mãe e saiu
para a manhã fria. O ar glacial apanhou-a de surpresa. Cerrou os dentes, pegou
na corda do seu iaque e afastou-se do acampamento que ainda dormia. Após
algumas horas de marcha, levantou-se uma tempestade, mas Dolma descobriu uma
gruta entre as inclinadas rochas que a rodeavam.
—Vamos abrigar-nos!
No fundo da gruta, a menina encontrou uma estátua de Buda.
Ajoelhou-se, murmurando uma súplica. Mas, de tão esgotada que estava devido à
longa caminhada, adormeceu aos pés da estátua. E sonhou que estava na mão de
Buda e sobrevoava imensas planícies verdes. Buda falava-lhe docemente,
animava-a, tranquilizava-a. E apontou-lhe com o dedouma ermida perdida na
montanha. Dolma acordou sobressaltada, com uma estranha frase a martelar-lhe na
cabeça: “Desconfia do mel doce oferecido no gume da navalha.”
Estava sozinha com o seu iaque e segurava na mão uma pequena
flauta. Quando a levou aos lábios, dela saiu uma doce melodia. Nesse instante
sentiu a presença de alguém…uma sombra que logo desapareceu. A menina correu
para a entrada da gruta e viu um enorme e belo bharal***.
—Espera! Não te vás embora! — gritou ela. — Tenho de ir até
à pequena ermida no cimo da montanha. Ajuda-me!
—Porque é que te hei de ajudar? — perguntou a cabra azul.
— Porque, sozinha, nunca conseguirei lá chegar! E tu és a
rainha desta montanha.
— O que fazes aqui sozinha?
— A minha mãe está doente e já não temos remédios que a
curem. E o meu pai está na aldeia. Vou ao desfiladeiro de Zhara enviar as
minhas preces aos deuses. É a única coisa que posso fazer.
— Anda comigo — disse a cabra a sorrir. — O som da tua
flauta tocou-me.
Montada no seu iaque, Dolma seguiu obharal até ao
pôr-do-sol. Outras cabras vieram-‑se-lhes juntar e, à chegada ao mosteiro, eram já um pequeno grupo. Dolma
agradeceu a ajuda da cabra e quis oferecer-lhe a flauta. Mas aquela recusou:
— A flauta escolheu-te a ti. Adeus e boa sorte, pequena
Dolma.
A divisão estava na penumbra. Dolma aproximou-se. Pela
janela aberta viu um velho monge a rezar diante de um altar. Bateu suavemente à
porta para não assustar o ermita.
— Boa tarde. Gostaria de passar aqui a noite. Prometo não
incomodar.
— Entra, pequena, entra. Estava à tua espera! — disse o
monge, retorcendo-se de um modo estranho.
Dolma viu que o seu olhar era maligno. Tossia e a cara
desfigurava-se ao falar.
— Acomoda-te, grrr, fica à vontade. Trago-te já um pouco de
chá e uns deliciosos bolinhos. Volto já, grrr…
— Que esquisito! — pensou Dolma.
Foi então que viu um prato cheio de raízes. Apanhou algumas
e guardou-as no gorro. Do quarto para onde o monge tinha desaparecido vinha um
cheiro a chá, mas também uns sons nada tranquilizadores. Dolma lembrou-se do
sonho e das palavras de Buda. Levantou-se para ver melhor o que se passava. E o
que viu deixou-a sem fala: um demónio! Invadiu-a um cheiro a podre. Não havia
um minuto a perder!
Fugiu dali. Pegou no alforge e no seu iaque e correu tanto quanto
as suas pequenas pernas o permitiram. Deixou-se cair atrás de um chorten**** e
acariciou o iaque, tranquilizando-o.
— Escapámos por um triz, meu bom amigo. Mais um pouco e
estaríamos agora entre aquelas coisas que estavam dependuradas no teto.
Dolma olhou à sua volta. A noite estava clara. O iaque
apontou então com a cabeça para o cume da montanha.
— Tens razão!— suspirou Dolma — Afastemo-nos mais desse
demónio.
Caminharam a bom passo, mas o frio era tão intenso que a
menina deixou de sentir os pés. Parou ao abrigo do vento e o iaque deitou-se,
com ela entre as suas patas. Dolma pegou na flauta, e a melodia que saiu
aqueceu-lhe o coração. Adormeceu sorrindo, embalada pela respiração do animal.
Ao despertar, um pequeno cavalo fitava-a com curiosidade.
— Assustaste-me!
— Desculpa. O que fazes aqui?
— Vou para o desfiladeiro do lago sagrado. Vou oferecer as
minhas orações.
— Posso acompanhar-te porque para mim é fácil. Mas, primeiro,
tens de me deixar comer algumas dessas raízes para me darem força.
Dolma deu-lhe os pedaços que apanhara em casa do monge. O
cavalo depressa os comeu. E logo saíram a galope. Parecia à menina que estavam
a voar. Andaram muito e iam tão depressa que logo viram o resplendor do sol
refletido na superfície do lago dominado pelo majestoso Zhara Lhatse.
— Oh, que fumo é aquele a sair da água?
— São as fontes quentes da montanha. Podes tomar banho lá,
se quiseres.
Dolma entrou com prazer nas águas borbulhantes. Em seguida,
continuaram o caminho e, após umas horas, chegaram ao desfiladeiro de Zhara. A
menina pegou nos seus pequenos cavalos de vento, aproximou-os dos lábios e
soprou com todo o amor e força que tinha dentro de si. Fechou os olhos e
enviou-os em pensamento aos deuses.
A viagem de regresso
durou muitos dias. Dolma orou todo o caminho até chegar à aldeia. Ao entrar na
tenda, deparou com o pai, os irmãos… e a mãe sentados em volta do lume. Colocou
a pequena flauta diante da estátua de Buda e atirou-se para os braços da mãe.
♦♦♦♦
Vocabulário:
**TSAMPA: bolinhas muito nutritivas típicas do Tibete,
confecionadas com feijão vermelho, grão-de-‑bico, lentilhas, milho, amendoim natural, mel puro, banana verde, soja
em grão e trigo.
***BAHRAL: cabra de pelagem azul e cornos grandes que vive
nas montanhas do Tibete.
****CHORTEN ou STUPA: monumento funerário que guarda as
relíquias de um santo ou orações sagradas. Encontram-se por todo o lado, porque
dão vida aos lugares à entrada das aldeias, ao lado dos mosteiros, nos
desfiladeiros e nos vales.
Anne-Catherine de Boel, Los pequeños caballos del viento, Barcelona,
Corimbo, 2009 (Tradução e adaptação).
Fonte: Clube de Contadores de
Histórias
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